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Ela está na UNESCO: Thaynah Gutierrez, nos conta sua jornada inspiradora da FGV até Brasília

30.04.2024

Todos os meses, o Soma FGV traz o quadro "Educação Transforma", com uma entrevista exclusiva com nossos ex-bolsistas. Esse mês, conheça a história inspiradora de Thaynah Gutierrez (CGAP 2020), uma voz dedicada à defesa dos direitos socioambientais e humanos. Dedicada, a FGV possui aprovações e diversas universidades, entre elas estão nome de peso com a FECAP, UNIFESP, UFABC, UNESP, USP, UNICAMP e por fim FGV, sua prioridade. Thaynah também fez um intercâmbio na Universidad de los Andes, na Colômbia, onde também foi bolsista integral.

Desde sua adolescência no bairro Ermelino Matarazzo, Thaynah se envolveu profundamente com sua comunidade, tornando-se uma figura ativa nos movimentos locais. Sua jornada a levou a trabalhar como estrategista em campanhas eleitorais, onde aprendeu sobre os desafios enfrentados pela cidade de São Paulo. Atualmente, ela atua como consultora na UNESCO, com foco no apoio à construção do Plano Nacional de Cultura em parceria com o Ministério da Cultura.

A FGVniana conversou com o Soma FGV, diretamente de Brasília, no dia de seu aniversário de 25 anos. Essa coincidência adicionou um toque especial à nossa conversa, destacando sua determinação e compromisso. Compartilhou conosco suas experiências, desafios e conquistas, revelando como sua passagem pela FGV e vivências moldaram sua jornada até a UNESCO. Um testemunho inspirador do poder da dedicação e da paixão na busca por um mundo melhor. Acompanhe a seguir:

Por Iamara Caroline

Soma FGV: Como era sua vida antes da FGV?

Thaynah Gutierrez: Cresci em Ermelino Matarazzo, extremo da Zona Leste de São Paulo e passei boa parte da vida lá, circulando muito pouco por São Paulo. Sempre estudei lá e desde os 12 anos trabalhei no bairro. Eu tinha uma conjuntura familiar onde para o meu pai a educação minha e dos meus irmãos era prioridade acima de qualquer outra coisa. Então ele fez um esforço gigantesco para conseguir custear a educação numa escola particular de bairro, que ainda hoje existe, para mim e para os meus irmãos.

Chegou um momento em que, sozinho, ele não conseguia arcar mais com a minha educação, e comecei a trabalhar para poder complementar essa renda, para custear a minha educação aos 12 anos. O meu processo de estudo foi muito dificultado devido ao trabalho, porque era exaustivo trabalhar e estudar.

Soma FGV: Você tem quantos irmãos e com o que você trabalhava?

Thaynah Gutierrez: Tenho dois irmãos mais velhos, um irmão e uma irmã. Eu trabalhava em um escritório de contabilidade como auxiliar fiscal, fazia o trabalho de lançamento de notas, uma função bem braçal. Nesse processo, foi muito difícil para eu conseguir olhar para a escola, para a educação, como um lugar positivo e de estímulo. Eu fazia muito pela obrigação. Foi muito difícil lidar, tanto que eu tinha notas bem ruins até o Ensino Médio. Ao mesmo tempo, eu tinha professores muito parceiros. Penso que olhavam para esse lugar, desse esforço de conciliar tão cedo estudo com a educação, como também uma oportunidade de me incentivar a continuar esses estudos.

Apesar dos meus irmãos serem mais velhos terem ingressado, no ensino superior mais cedo, eu não tinha muitas informações sobre como funcionava o Ensino Superior. Quais eram as Bolsas, as oportunidades, como funcionava o vestibular? A gente conversava disso muito pouco, eu e meus irmãos, porque eles também trabalhavam, então a gente tinha pouco tempo de socializar, de trocar informações e tudo mais. Nenhum dos meus dois pais chegaram ao ensino superior, eles só finalizaram o Ensino Médio.

No meu terceiro ano de graduação, uma professora de história me disse que estava acompanhando alguns alunos que estavam se preparando para FGV. Ela via que eu tinha bastante interesse em história, filosofia, poderia gostar das ciências aplicadas. Ela me disse que se eu quisesse ingressar no ensino superior com bolsa, passar no vestibular, precisava fazer os cursinhos pré-vestibulares enquanto eu estava no Ensino Médio, porque só com o que eu estava estudando, não seria suficiente para eu passar.

Soma FGV: Foi assim que você conheceu a FGV?

Thaynah Gutierrez: Isso, foi uma professora no Ensino Médio que me falou sobre a GV, pesquisei e descobri que o cursinho pré-vestibular estava aberto para inscrição. Fiz a inscrição e consegui ser aprovada no cursinho. E, ao mesmo tempo, desde os 15 anos, eu já era muito articulada no meu bairro nas articulações comunitárias, principalmente vinculadas à Igreja Católica. Então eu fazia parte das Pastorais da Juventude, Fé e Política e Saúde. Me articulava muito no bairro.

Nesses movimentos também tinha um cursinho pré-vestibular. No último ano do Ensino Médio eu passei a estudar na escola, trabalhava de tarde e à noite eu fazia cursinho pré-vestibular no meu bairro. Aos sábado eu fazia o cursinho da FGV, o dia inteiro. Nesse processo de muito desgaste, consegui entrar de fato, nesse ritmo pré-vestibular. Muito desesperada se eu conseguiria passar em alguma faculdade ou não. Acabei prestando umas 7 faculdades e conseguir aprovação em praticamente todas elas. Porém a GV, desde que entrei no cursinho, era a minha prioridade. Inicialmente, porque ela era uma faculdade integral e confesso para você que esse era o ponto que mais brilhava meus olhos: a possibilidade de só estudar.

Ainda que eu não tivesse muita certeza de como funcionava a bolsa, de como seria essa permanência universitária, eu estava muito nesse lugar de querer só estudar e experimentar essa vivência universitária da melhor maneira. Por isso que escolhi a FGV, mesmo tendo passado na USP Leste, que era bem mais perto de casa.

Soma FGV: Você foi aprovada em quais universidades?

Thaynah Gutierrez: Passei na FECAP e na FGV, com bolsa integral. E também na UNIFESP, UFABC, UNESP, USP e UNICAMP.

Soma FGV: E como foi a sua vivência na FGV?

Thaynah Gutierrez: O começo foi muito difícil. Como eu falei, eu não tinha essa experiência de circular pela cidade. Antes de ir para o cursinho, não entendia muito bem que nível de desigualdade ou que lugar que eu me encontrava, se comparado com o público comum da FGV. No meu lugar, inclusive, eu achava que eu tinha muitos privilégios por poder estudar num colégio particular de bairro. Só entrando na FGV que pude entender que, na verdade, isso não era suficiente para me colocar no lugar de fato de privilégio, se comparado com quem tinha tido um estudo nos colégios bilíngues e nos colégios de elite que existiam em São Paulo.

Foi um choque muito grande de entender, mas, ao mesmo tempo, a minha turma teve um privilégio muito grande, fomos 21 bolsistas em uma sala de 50 alunos. Era a maior quantidade de bolsistas que FGV já tinha tido e desses 21 alunos, 15 deles eram pessoas negras. Então a gente teve uma sala muito representativa. Foi a primeira vez que a GV decidiu aceitar o Enem como forma de ingresso e isso trouxe uma sala muito parecida com aquilo que eu estava acostumada.

Então, apesar do ambiente de fora da minha sala de aula ser muito hostil, e violento de várias formas, a gente conseguiu criar uma rede muito acolhedora dentro da sala de aula. Acho que a gente conseguiu também educar e reeducar de certa medida aos professores para saberem acolher também as nossas dores em relação à dificuldade de acompanhar alguns conteúdos, principalmente os conteúdos de exatas. E nesse processo, logo no meu primeiro semestre, eu fui vítima de uma injúria racial em um jogo Interclasses. Graças a muitos amigos que estavam por perto eu consegui ser acolhida e amparada e pensar quais eram as melhores formas de levar esse caso.


Thaynah ao seu lado do professor da FGV e atual
Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do
Brasil, Silvio Almeida. Foto: 2017, arquivo pessoal. 

Passamos pelas comissões internas da GV, fizeram todo o processo para identificar quem tinha sido aluno, pois foi uma ocasião em que eu não vi de onde tinha vindo o comentário racista para mim. E esse episódio deu a possibilidade de a gente fundar finalmente o Coletivo Negro (Coletivo 20 de Novembro). Ainda que tivessem poucos estudantes negros antes da nossa chegada, eles não estavam articulados nesse lugar de um coletivo. A FGV nunca tinha tido um coletivo até o nosso ingresso, no primeiro semestre de 2017. A gente decidiu fundar, com muito apoio da Coordenação do Curso de Administração Pública, especialmente do Professor Márcio Macedo, carinhosamente apelidado de Kibe.

Ele era um dos únicos professores negros da FGV e que nos acolheu imediatamente e nos deu todo amparo para a gente pensar essa fundação do coletivo. Fico muito feliz de saber que o coletivo está caminhando ano a ano para um lugar de maior institucionalização lá dentro da GV.

Posso dizer que essa minha passagem pela GV foi marcada por esse balanço: ao mesmo tempo que a gente teve que resistir muito, e eu falo desse lugar coletivo, pois eu acho que a minha experiência não foi nada individual, mas sempre muito conectada com outros alunos, muito abraçada pelos coletivos que integrei, fiz parte... Ela também teve esse lugar de uma janela de oportunidades muito grande, que eu reconheço que eu não teria em nenhum outro lugar.

Aproveitei praticamente todas as oportunidades que me foram dadas de imersões, de conexão local, de pesquisa, de assessoria, de monitoria para professores e de intercâmbio fora do país. Aproveitei todas as oportunidades que a FGV deu e pude viver essa experiência universitária da forma que eu tinha sonhado quando escolhi prestar GV.

Soma FGV: Como você se manteve na FGV sendo um curso integral?

Thaynah Gutierrez: No processo de permanência no primeiro ano de graduação a gente não tinha nenhuma previsão de permanência estudantil que não fosse através das Bolsas restituíveis. [...] Fiz monitorias para os professores, busquei espaços de assistência de pesquisa, estágio de férias nos bancos, que ofereciam estágio de férias para a gente. Então, a partir dessas possibilidades, eu fui complementando a renda e conseguindo me manter.

Por conta de as imersões serem obrigatórias, e elas teriam um custo para todos os alunos, nos últimos anos eu estava sem trabalho ainda pela faculdade ser integral, e tive que pedir os auxílios restituíveis.Tinha um sistema de auxílio não reembolsável, mas esse era rotativo entre todos os bolsistas da FGV. Eles tinham uma quota semestral para poder distribuir, então em um semestre você poderia ser contemplado, mas o outro provavelmente você não seria. Não dava para contar necessariamente com isso e os meus pais não tinham nenhuma condição de me prover renda para poder permanecer.

Eu tive que fazer um pouco esse “corre”, para buscar outras formas de remuneração. Nesse processo eu me envolvi também com campanhas eleitorais, desde sempre estava muito articulada em política. Nas campanhas eleitorais, também conseguia ser remunerada pelos trabalhos que eu fazia e tudo mais. Foi mais ou menos assim que eu me mantive até o final da graduação.

Soma FGV: E como foi descobrir o mundo por um intercâmbio?

Thaynah Gutierrez: Em 2020, no meu penúltimo ano de graduação, fui contemplada pela bolsa do Santander Ibero-Americano para fazer um intercâmbio em algum país da América Latina. Escolhi a Colômbia, que era um país que outra amiga, estudante negra da FGV e que me ajudou muito durante a minha permanência lá, já tinha feito e ela me recomendou muito. O intercâmbio tinha uma bolsa que contemplava essa permanência, mas ela não era suficiente para todo o período. Abri uma vaquinha online e consegui complementar a renda que precisava. Fui para esse intercâmbio, que para mim foi uma oportunidade única.

Ter a possibilidade de fazer essa imersão mesmo, não só no idioma, mas numa rotina universitária diferente, foi um grande presente. Fiz muitos amigos e também pude aprofundar muito os estudos que eu queria. Viajei com a cabeça muito focada em fazer disciplinas voltadas a estudos da religião e também em avaliações de políticas públicas de gênero, de diversidade sexual e tudo mais. Consegui ter excelentes professores que me apoiaram muito nos meus caminhos de retorno para fazer o TCC.

Infelizmente, o intercâmbio foi interrompido pela pandemia. Eu tive que voltar antes do período completo, para poder terminar o intercâmbio aqui em São Paulo, mas também eu considero que esse retorno foi muito providencial. Cerca de 2 semanas depois que retornei da Colômbia, o meu avô faleceu de Covid-19. A gente morava no mesmo terreno. Foi um processo muito doloroso, e eu agradeci de poder estar com a minha família.

Sou muito feliz por essa oportunidade de intercâmbio, apesar de ter ficado com esse gostinho de querer voltar para a Colômbia, para finalizar esse processo que foi interrompido pela pandemia. Rendeu muitos frutos e me deu confiança nesse outro idioma que eu não tinha tanta antes de ter essa oportunidade.

Soma FGV: E como está sua vida profissional após a FGV? O que mudou no seu mundo?

Thaynah Gutierrez: Nossa, mudou muita coisa. Já na GV, estando lá, eu já sentia um pouco esse abrir de portas. Eu sempre fui uma estudante que me preocupava muito com manter esse pé fora da faculdade enquanto eu estava lá. Toda vez que eu tinha oportunidade de participar dos movimentos que estavam fora como centros de pesquisa, fórum de discussão, espaços de networking também com estudantes negros de outras universidades, eu ia. E percebia o quanto a formação na FGV dava para a gente uma ampliação de olhar sobre carreira que outros cursos em outras universidades não permitiam e que eu considerava um fator muito importante.

Eu já fui traçando enquanto estava na graduação quais eram as possibilidades de trabalho que eu queria experimentar. E eu acho que consegui ir trilhando essa “pequena carreira”, estou no começo, de uma forma muito coerente com o que eu queria. Durante a graduação tive essa possibilidade de trabalhar com campanhas eleitorais e com pesquisa. Tive essas experiências no banco também, que me deram muitas habilidades ferramentais de trabalho. Como eu já tinha essa experiência prévia, de já ter trabalhado antes de entrar na faculdade, quando eu estava no último ano procurando estágio, tinha de forma muito objetiva o que eu queria fazer e onde eu queria estar. Era muito importante que o trabalho tivesse essa conciliação com os meus valores, queria trabalhar com causas que eu acreditava.

Tive a possibilidade de prestar um estágio na Conectas Direitos Humanos e ser aprovada para fazer o começo da minha carreira fora da graduação lá. Cheguei para trabalhar numa área de captação de recursos na Conectas, só que no meio do processo seletivo, eles viram que eu tinha mais cara e bagagem para as áreas temáticas. Eles abriram uma vaga na área de defesa dos direitos socioambientais, onde eu permaneci até o começo desse ano de 2024. Fiz 3 anos dentro da Conectas e esse trabalho me permitiu abrir mais 1 milhão de portas. Eu acredito que só por conta dessa bagagem ferramental da FGV, que eu estava madura o suficiente para abraçar essa oportunidade de forma integral.

Trabalhei diretamente com comunidades indígenas e quilombolas, com os processos de incidência política nacional e internacional, e me aprofundei nas pautas climáticas e socioambientais. Ao mesmo tempo, eu estava muito articulada com os movimentos sociais, continuei muito articulada politicamente fora do trabalho. Acho que a GV me permitiu aprender a conciliar esses espaços de maneira estratégica para que um fortalecesse o outro nessa minha carreira profissional.

Desde o meu primeiro ano de faculdade, quando eu fiz a imersão federal, eu tinha muita vontade de vir para Brasília. Era um grande sonho. Toda vez que eu vinha para cá, ficava olhando e brilhando os olhos com essa possibilidade. Nesse ano, eu tive a possibilidade de ser convidada para trabalhar como consultora da UNESCO no Ministério da Cultura, para trabalhar diretamente com o Plano Nacional de Cultura. Enxergo que também é um lugar onde a FGV nos preparou muito para estar.

Na necessidade das atribuições para os trabalhos, eu considero que a FGV contemplou, em boa medida, sim. Óbvio que só trabalhando que você entende todos os contextos e dinâmicas de trabalho, mas eu considero que foi muito importante estar num espaço que fomentava muito essa ponte com Brasília. Esse intercâmbio com as outras instituições, que me permitiu ter confiança e segurança de assumir esse trabalho que eu estou assumindo agora aqui.

Soma FGV: Você recomenda FGV para outros alunos?

Thaynah Gutierrez: Com certeza. [...] Apesar de ter sido uma experiência muito difícil e nem um pouco romântica do ponto de vista da resiliência que precisei ter para poder permanecer e finalizar essa graduação, eu acho que ainda assim, é um dos espaços mais incríveis, para você pensar uma progressão de carreira que tem hoje, no espaço acadêmico universitário.

Eu não encontrei nenhum outro currículo em outra universidade que pudesse oferecer tantas possibilidades para além da grade curricular. Fiz parte da reformulação do curso, então sei o quanto os professores se dedicam para repensar o curso cotidianamente. Acho que, além de ter uma grade curricular com excelência, o fora da sala de aula, os espaços de networking, de aprendizado, imersões, as pontes que a gente faz, tudo isso contribui demais para nossa formação enquanto indivíduo. Por conta disso é um espaço universitário que muitas outras pessoas como eu deveriam ter a possibilidade e o privilégio de estar.

Sempre que eu posso, eu recomendo e apoio muita gente. Desde que eu me formei, tem mais umas 3 pessoas do meu bairro que incentivei e que entraram na FGV. Eu sou muito feliz por isso, porque eu acho que é um espaço que desloca a gente e faz essa mobilidade social acontecer, mas se a gente é centrado naquilo que a gente quer, a gente não perde a essência dos lugares de onde a gente vem. A gente só complementa com essas novas ferramentas. Eu recomendaria com certeza a FGV.

Soma FGV: Gostaria de falar algo que não perguntei?

Thaynah Gutierrez: [...] Acredito que a minha graduação só foi possível, do começo ao fim, devido à grande abertura que a gente tinha com os professores. A grade docente da FGV no curso de Administração Pública tem um perfil muito acolhedor para com os alunos. Uma proximidade que muitos outros alunos, de outras carreiras e de administração pública fora da FGV, não têm. Romper com esse distanciamento do professor também ajuda muito a gente ter autoestima intelectual para poder pensar e fazer coisas desde que a gente ainda estava na graduação, até quando a gente sai. Ter os professores do nosso lado é algo muito significativo também.

 

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