• Clima; Gestão Empresarial

Ética, negócios e a crise do COVID-19

25.03.2020

Por Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, professor de economia nos cursos de administração pública e de empresas e pesquisador do FGV Ethics.

Iñaki Gabilondo, famoso âncora da televisão espanhola, na sua coluna no canal do YouTube do El País, argumentou que esta crise provocará uma revalorização do conceito do que é publico e coletivo. O Estado não deveria apenas colocar flutuadores para guiar navegantes, mas jogar boias salva vidas e, principalmente, tê-las à mão. Ou, eu falando agora, assim como em piscinas públicas elas estão lá, penduradas, por precaução, ao Estado cabe ter um sistema de proteção. Ademais, há que se ter um senso de decência e de bem comum, no sentido de commonwealth dos liberais iluministas escoceses David Hume e Adam Smith.

Neste artigo quero analisar as declarações de dois empresários, Junior Durski e Roberto Justus (que também é animador de TV), baseadas em falsas evidências e em julgamentos morais questionáveis. Há também um vídeo recente de Luciano Hang mas, se a leitora e o leitor me permitem, abstenho-me do sofrimento de apresenta-lo aqui, mesmo que resumidamente.

Todo julgamento moral é questionável, já que isto depende da visão de mundo da qual partimos e de situações dilemáticas reais. Mas, há discursos normativos moralmente superiores ao colocado por eles. Inicialmente, apresento o que cada um falou (todas citações, as fontes, inclusive de dicas bibliográficas relacionadas ao tema deste artigo, colocarei ao final).

Justus, numa resposta a post sobre vídeo de Atila Iamarino, a quem conheço há anos (uso em aulas os vídeos de teoria dos jogos) e que, creio, hoje, dispensa apresentações, afirma: “(…) quem entende um pouco de estatística, que parece que não é teu caso, vai perceber que é irrisório. Dos que morrem, mesmo dos velhinhos, só 10 a 15% morre. Se pegarmos o vírus, o que seria bom, a gente pegaria anticorpos e ele já morreria de uma vez”. Nota: os erros de português não são meus, é o que foi transcrito. E segue: “(…) vai custar muito caro. Você está preocupado com os pobres? Você vai ver a vida devastada da humanidade na hora do colapso econômico, da recessão mundial, dos pobres não ter o que comer, das empresas fecharem, do desemprego em massa, não dá pra comparar com um vírusinho, que é uma gripezinha leve para 90% das pessoas.”.

Durski afirmou que: “o Brasil não pode parar dessa maneira, o Brasil não tem essa condição. As consequências serão muito maiores do que as pessoas que vão morrer por conta do coronavírus” e continuou : “(…) eu sei que temos que chorar e vamos chorar pelas pessoas que morreram por conta do coronavírus. Vamos isolar os idosos, aqueles com problemas de saúde, mas não podemos por conta de 5 mil pessoas que vão morrer… eu sei que é grave, que é um problema, mas o que é mais grave no Brasil é que ano passado morreram mais de 57 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, mais de 6 mil por desnutrição, 5.400 de tuberculose”. Aliás, ao final dessa afirmação, há uma falácia lógica evidente, mas nem comentar.

Em primeiro lugar, ciência. Creio que falarei algo que vocês já sabem, mas é necessário salientar alguns pontos. O que os modelos apresentados até agora indicam é que a dinâmica epidemiológica desse tipo de vírus, quando as medidas tomadas não são como as da Coreia, é o espalhamento rápido, implicando uma sobrecarga no sistema de saúde pública e privada.

Intermezzo: antes de prosseguir, alguém poderia dizer: “com qual autoridade um economista opina sobre isso?”. Uma economista, engenheira, física, matemática, estatística ou uma cientista de dados é treinada no uso de modelagem, estatística, econometria. Vários epidemiologistas são matemáticos, há também muito de teoria dos jogos aplicada à área. Com a devida informação de biólogos, sobre a natureza específica de um vírus (mortalidade, público vulnerável, velocidade de propagação, mutabilidade – algo que somente se sabe ex post), esses profissionais podem ler papers e formar opinião qualificada.

Feito o “habeas corpus” preventivo, prossigo. Em segundo lugar, a interpretação que temos dos dados indica que o ideal seria a aplicação da estratégia coreana, como sugere, por exemplo, Osmar Terra. Por sinal, Terra não mostra nenhum modelo, meta-análise dos modelos, dados e fontes, como papers, para basear seus argumentos. Seria interessante tê-los para enriquecer o debate.

A Coreia se antecipou, fez testes em massa com amostragem em campo e isolamento seletivo. O problema é que passamos do ponto, assim como aqui na Espanha. It’s too late to be late again: o que os modelos disponíveis que temos diz é que precisamos do isolamento social. Podemos estar errados? Tomara. Pequenas mudanças nas variáveis podem resultar em mudanças consideráveis nas predições desses modelos, mas é o que temos para hoje, como dizia minha mãe ao me defrontar com um prato de dobradinha.

Evidentemente o isolamento social tem seus custos econômicos e sociais, aliás mal distribuídos entre grupos no que se refere ao nível de renda, acesso a saneamento, habitação adequada e outros fatores evidentes. As decisões, supostamente neoutilitaristas, propostas pelo empresários citados, implicariam uma escolha unívoca. Não é o caso, mesmo para critérios próprios a este sistema moral. Temos políticas públicas compensatórias. Armínio Fraga propõe várias soluções, sociais e econômicas, por exemplo. Numa economia de guerra, alunas e alunos de introdução à economia aprendem, transformamos manteiga em canhão: temos processos de produção industrial intensivos em capital (como uso de pouca mão de obra) e a agropecuária se desenvolve em ambientes menos nocivos do ponto de vista da epidemia: equipamentos hospitalares e comida são nossos canhões agora.

Adam Smith não tinha em boa conta a moralidade dos “homens” de negócio. A avareza parecia ser-lhes, no seu ponto de vista, mais habitual que a empatia. Nunca afirmou, como sempre nota Eduardo Giannetti, que vícios privados geram benéficos públicos. Vícios privados geram vícios coletivos. A parte relevante do PIB brasileiro, que não são os empresários aqui mencionados, deve começar a se organizar, executivos, executivas, empresárias e empresários, para dar soluções aos efeitos colaterais do confinamento, pensando no bem comum, e na decência.

Referências:

1. Osmar Terra (https://www.poder360.com.br/coronavirus/ex-ministro-de-bolsonaro-terra-c...)

2. Roberto Justus (https://istoe.com.br/roberto-justus-discute-com-mion-sobre-coronavirus-g...)

3. Junior Durski (https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/23/coronavirus-dono...)

4. The Lancet sobre coronavírus (https://www.thelancet.com/coronavirus)

5. Paper da The Lancet sobre Itália e possíveis lições para o Brasil (https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2930690-5)

Dicas de leitura:

1. O livro do porquê: a nova ciência da causa e do efeito, Judea Pearl e Dana Mackenzie, 2019.

2. The rules of contagion: why things spread, and why they stop, Adam Kucharski, 2020

Nosso website coleta informações do seu dispositivo e da sua navegação e utiliza tecnologias como cookies para armazená-las e permitir funcionalidades como: melhorar o funcionamento técnico das páginas, mensurar a audiência do website e oferecer produtos e serviços relevantes por meio de anúncios personalizados. Para mais informações, acesse o nosso Aviso de Cookies e o nosso Aviso de Privacidade.